terça-feira, 6 de maio de 2008

As Reformas e os 120 Anos da Abolição

Em 2008 toda reflexão dos governantes, da classe política, da intelectualidade e dos variados setores organizados da sociedade civil sobre o destino a ser projetado ao Brasil tem que dialogar com o resultado dos 120 anos de abolição. Há compreensão de amplos setores de sua incompletude e do vigor do projeto conservador de República, elaborado pela minúscula oligarquia branca que dominava o Brasil em finais do século 19. Não efetivamos o processo de abolição da escravatura.

Por: Edson França

Mantemos uma das mais acentuadas desigualdades social e econômica do mundo. A população negra está na margem da riqueza produzida pela sociedade brasileira. Temos uma República sem participação do povo, concentradora de poder político e econômico, sem democracia social e com cidadanias violadas. Temos que apoiar uma agenda que redesenhe o cenário descrito, priorizando o desenvolvimento do país, a superação das desigualdades regionais e sociais e a ampliação da democracia.

Continuam na pauta do Planalto e do Congresso Nacional, em 2008, propostas de algumas reformas que podem vir ao encontro dos mais profundos interesses sociais, que beneficie a coletividade, aumente a presença do Estado na economia, rompa com as nefastas distorções oriundas do racismo e contribua para que a qualidade de vida da sociedade brasileira atinja um patamar mais elevado. A agenda dos 120 Anos deve acompanhar o debate das reformas, apresentar propostas e garantir resultados positivos para a demanda anti-racista. Há interesses, intrinsecamente conectados com os anseios da população negra, nas reformas que estão em pauta, de modo que o movimento negro está desafiado a discutir-las. Assim intervirá no novo projeto nacional que pode ser desenhado com as reformas e contribuirá para resolução parcial ou mais estrutural dos grandes problemas nacionais.

Na reforma da educação – prioridade número um para o movimento negro - há necessidade de garantir acesso e permanência universal até o ensino médio a todos brasileiros, ampliar o acesso e permanência ao ensino superior para população negra e pobre, reformular o currículo escolar, de modo que atenda a diversidade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, melhorar a qualidade da educação investindo prioritariamente nos profissionais da área. A reforma educacional deve ser a mãe das reformas, pois a educação levará desenvolvimento perene ao país. Um povo que se educa, educa seus governantes e dirige a nação.

A reforma política deve ampliar a participação popular, ampliar a transparência nos procedimentos daqueles que se encarregam da gestão pública, fortalecer os partidos políticos, fortalecer os instrumentos de democracia participativa, ampliar a presença de negro e mulheres nas três esferas de governo - do executivo e legislativo. Há uma histórica e proposital sub-representação de mulheres e negros na política nacional, desde a direção dos partidos aos mandatos eleitorais. Não consolidaremos a democracia brasileira sem a efetiva participação de mulheres e negros no destino da nação. A soma desses segmentos constitui na maioria esmagadora do povo brasileiro, não se desenvolve um país sem seu povo. Hoje há instrumentos formais e informais que usurpa a participação proporcional dessa maioria populacional.

A reforma agrária deve definitivamente romper com o latifúndio, revogar a Lei da Terra de 1854, que tirou do ex-escravo, do negro e do pobre brasileiro o direito a ocupar um pedaço de terra e dela tirarem o sustento de sua família. Regularizar todas as terras quilombolas, mobilizar aqueles que querem terra para trabalhar, privilegiar a pequena e média propriedade levando conhecimentos técnicos, financiamento, infra-estruturas que permita um desenvolvimento seguro. Em 2007 o ápice da luta anti-racista se deu na luta dos quilombolas para efetiva posse e sustentabilidade da terra que ocupam centenariamente. O Decreto Presidencial 4887/03 - estabelece regras para regularização de terras ocupadas por remanescentes de quilombos - continua sofrendo duros ataques da bancada ruralista, anunciando que a peleja entre latifúndio, agro-negócio e grileiro contra os quilombolas está longe do fim, comprovando que quando o governo, na questão racial, sai da retórica e vai para ação efetiva, afloram secretas e inconfessáveis resistências racistas. Daí nosso interesse e a emergência dessa reforma.

Precisamos da reforma urbana, pois a lógica imposta pelos grandes especuladores imobiliários e governos conservadores tem ser superada, na medida em que isolam a massa popular nos cantões periféricos dos municípios sem saneamento básico, transporte, equipamentos sociais, espaços de cultura e lazer. Condição comparável aos batustões que segregavam a população negra da África do Sul no período do apartheid. Apenas interesses egoístas transigem com a forma de ocupação territorial em curso nos grandes e médios municípios brasileiros. Necessitamos de uma reforma urbana para conter a ganância da especulação imobiliária, tirar a população da marginalidade, garantir direito a moradia descente, garantir acesso a serviço público e garantir segurança de todos.

A reforma tributária tem um caráter estratégico para distribuição de rendas e ao combate das desigualdades regionais. Embora a derrota do governo na aprovação da CPMF tenha colocado a reforma tributária na frente da fila, será difícil efetiva-la, pois envolve complexa engenharia política para harmonizar os inúmeros interesses de setores da economia, dos estados, dos municípios e da união. Há tendência de pouco controle social no processo de debate que essa reforma exigirá. Ocorre que sem acompanhamento será uma reforma que atenderá apenas os interesses dos entes federativos, dos banqueiros, do grande empresariado rural e urbano. Devemos exigir que as grandes fortunas sejam progressivamente tributadas e redistribuídas, que a especulação e o rentismo sejam desestimulados, que façamos a escolha da produção e do desenvolvimento econômico justo e sustentável.

No ano corrente a agenda eleitoral para prefeito e vereadores, pela sua característica, permitirá aprofundar essa reflexão e faze-la chegar às entranhas do país. Será um grave erro dos partidos progressistas e dos movimentos sociais permitirem que as reformas seja pauta exclusiva do Congresso, discutidas apenas em Brasília. Necessitamos mobilizar amplos setores da sociedade brasileira e provocar o debate na base da sociedade. Temos que trabalhar para conquistar avanços sociais importantes no ano que o Brasil completa 120 anos de desinstitucionalização da escravidão. Temos que terminar a abolição iniciada formalmente em 1888 e corrigir as imperfeições da nossa República.

Dia 13 de maio: positivo ou negativo?

A Abolição da Escravidão em solo brasileiro foi produto de vários fatores conjugados...
... do anacronismo do trabalho escravo, pois toda América já havia superado esse sistema, inclusive as colônias ainda existentes; das sucessivas pressões externas, especialmente dos países onde o capitalismo estava em estágio mais avançado como a Inglaterra; das novas forças produtivas iniciadas com a evolução do capitalismo no Brasil; do forte movimento abolicionista que em alguns momentos teve protagonismo da massa popular, militância de líderes populares comprometidos com a desmarginalização da pessoa escrava e negra como Luis Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, Antonio Bento, embora o processo geral fora controlado pela elite política e econômica; das lutas iniciadas desde o momento que os africanos são trazidos ao Brasil como escravos e reagem a ignomínia do sistema através de variadas formas: morosidade na produção para encarecer - muitas vezes inviabilizar econômicamente - o trabalho escravo, fugas individuais e em grupos, formação de quilombos, saques e depredação de engenhos, greves e negociações até o limite do sistema, visto que o escravo nascido no Brasil sabia como “esticar a corda”, levante armardo e convulsões popular.

Em 13 de Maio de 1888 o Brasil desinstitucionaliza a escravidão, abolindo uma significativa massa de homens e mulheres negras de uma infame relação de trabalho e status social. A partir desse dia o trabalho escravo perde amparo legal, o apoio do Estado e seu uso é criminalizado. Inegavelmente a Lei Áurea foi um salto de qualidade na vida institucional brasileira e uma grande conquista popular na medida que foi vitoriosa a dura resistência e luta para o fim da escravidão. Ser ou não ser escravo é condição juridica diferente, pois um escravo é considerado um bem semovente. A humanidade superou uma grave deficiência legal e moral quando aboliu e criminalizou a escravidão. No Brasil durante muitos anos a população negra, através dos clubes, associações, entidades e jornais negros comemorou o 13 de Maio, ainda vemos profundas reminiscências dessa compreensão através dos nomes dos clubes negros tradicionais (Clube 13 de Maio, Clube José do Patrocínio, Clube Luis Gama, Clube 28 de Setembro, dentre outros) sediado em vários municípios do interior de estados brasileiros.

A controvérsia relacionada ao 13 de Maio são os movimentos preparatórios para um novo projeto de nação empreendido pelo Estado e pela elite brasileira antes e depois da Lei Áurea e os resultados obtidos em benefício daqueles que detinham o poder político e econômico do Brasil. O processo abolicionista teve pequenas variáveis entre os países escravocratas, em geral as elites locais tiveram o controle do debate, optaram pela gradualidade do processo (leis como a do ventre livre, sexagenário), respeito a propriedade privada (a maioria dos países indenizaram os proprietários de escravos, no Brasil a indenização é indireta, dava através da compra de toda produção cafeeira pelo governo federal prática extinta na década de 30), preocupação com o alto contingente populacional negro (fim do tráfico negreiro, proibição da imigração africana, incentivo a imigração européia e uso de escravos em conflitos) e manutenção do poder nas mãos dos brancos e seus descendentes.

Os setores dominantes do Brasil particularizam seu projeto abolicionista quando optam pelo branqueamento do país ao invés de obter uma maioria social branca, recrudescem o uso da violência e repressão contra a população descendente de escravos a fim de eliminá-la fisicamente (Balaiada, Canudos, Guerra do Paraguai); buscam a desafricanização do país através do degredo de africanos e/ou escravos libertos acusados ou suspeitos de crimes ou ato anti-social; impedem a posse da terra através da Lei da Terra, em 1854, junto dessa lei os quilombos conhecidos são dizimados pela Força Pública; substituem a mão de obra dos escravos, negros e dos brasileiros pela do camponês europeu atraídos ao Brasil - marginalizando aqueles que desde os primórdios da colonização na América Portuguesa trabalharam na terra.

Nossa particularidade na passagem do trabalho escravo para o livre resultou em graves problemas sociais que perduram atualmente. A elite escravocrata brasileira se beneficiou pelo fato do Brasil ser o último país a romper com o escravismo, pois inspirada nas experiências abolicionistas que remontam ao século 18 - na Inglaterra, dos abolicionistas pioneiros Willian Wilberforce, Charles Fox e Lord Grenville - consegue conduzir o processo da forma que planejou: lento, gradual e seguro, além de obter parte importante dos resultados perseguidos mantendo-se sem riscos no poder. A subalternidade social e econômica da população negra e a profunda desigualdade entre ricos e pobres no Brasil não vem da abolição dos escravos. São heranças diretas da escravidão, da consertação política imediatamente anterior e após a Lei Áurea; do capitalismo dependente que se erigiu e atinge desproporcionalmente as populações marginalizadas, do subdesenvolvimento que marca a trajetória econômica brasileira, somados a sustentação do racismo sistêmico que assola a democracia e questiona a unidade do povo brasileiro. Essa herança nefasta pesa sobre o povo brasileiro que em grande parte se miscigenou, que sofre com a ganância de uma elite que detêm o poder político e econômico do país e o governa com sadismo, autoritarismo, egoísmo e de costas aos interesses nacionais, tal qual o senhor de engenho.

Desse modo a democracia e a justiça social brasileira são maculadas pela pobreza que caminha muito próxima a riqueza; pela inobservância dos direitos fundamentais do ser humano pobre em maior grau do negro, ao lado da impunidade dos crimes praticados pelos ricos, intitulados “crimes do colarinho branco”; pelos latifúndios que expulsam famílias trabalhadoras do campo, reproduzindo os efeitos da Lei da Terra; pela inversão de prioridades que transformam o país em refém do capital especulativo prejudicando o desenvolvimento e a prosperidade do Brasil. Experiências como a Lei Áurea, embora carregadas de insuficiências, devem ser valorizadas. Sob pena de jogar fora a água suja (escravidão e abandono dos recém libertos) e a criança (abolição da escravatura). Cabe aos lutadores anti-racista, ressignificar o 13 de Maio evitando a apropriação dessa data pela elite demagoga e mentirosa. Um país com histórico antidemocrático, violento e que marginaliza sua população não-branca e pobre, não deve renunciar fatos positivos, ao contrário, deve incorporá-lo e ajustar as insuficiências que esses fatos apresentar. Quando negamos o valor positivo do 13 de Maio para a população negra e para população brasileira assumimos nossa incapacidade de produzir resultados positivos, mesmo quando coletivamente empreendemos uma luta.

*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra