quinta-feira, 19 de abril de 2012

Deborah Duprat pede improcedência de ação contra o Decreto 4887/2003

quinta-feira, 19 / abril / 2012

Em julgamento realizado no Supremo Tribunal Federal, na quarta-feira, 18 de abril, a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, pediu a improcedência da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3239) contra o Decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT.
Deborah Duprat explicou que o Ministério Público Federal (MPF), no final da década de 80 e início da década de 90, já se viu às voltas com demandas tendo por base o artigo 68 do ADCT, que suscitou um certo estranhamento por não ser muito límpido. De acordo com ela, foi preciso verificar a realidade empírica que deu ensejo a este artigo no processo constituinte e, por outro lado, também situá-lo no âmbito dessa Constituição tão emancipadora.
Em relação a antropologia, conforme esclareceu, descobriu-se estudos do início da década de 80 falando de comunidades que estavam localizadas em todo o país tendo como características comuns: a relação transcendental com a terra; ocupação coletiva da terra e do uso dos seus recursos naturais; comunidades com modo de vida, história, memória, mitos, forma de expressão próprios que os distinguia dessa sociedade de grande formato e de outros grupos existentes no país; além de um passado e uma memória ligados à opressão e à escravidão. Em relação à militância, ela disse que a sociedade maranhense de direitos humanos organizou um vasto material mostrando a luta dessas comunidades ao longo do tempo tentando ter direitos territoriais sobre as áreas que ocupavam.
Para Deborah Duprat, essa realidade estava desconhecida porque a ideia-força do Estado nacional no período constitucional pretérito era o da absoluta homogeneidade. “E tínhamos um direito que homologava esse modelo do Estado, um direito que desqualificava as diferenças e procurava neutralizá-las, ou assimilando-as na sociedade de grande formato ou, por outra lado, tornando-as invisíveis”, declarou. Ela perguntou como situar essa questão na Constituição de 1988 lembrando que essa Constituição faz parte de um movimento de caráter emancipatório que rompe com o paradigma da igualdade meramente formal, buscando uma igualdade material.
Ela afirmou ainda que as Constituições mundo afora também estavam antenadas com o direito internacional que se produziu nesse período, citando a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determinava que os Estados promovessem medidas de assimilação gradativa dos indígenas à sociedade nacional, revogada pela Convenção 169, que não trata só de povos indígenas, mas de povos tribais. Para ela, esta convenção trouxe uma definição bastante interessante: povos tribais são aqueles cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, que tenham domínio pleno da suas vidas e que os Estados assegurem espaços para que eles existam, donos e senhores dos seus destinos.Por outro lado, Deborah Duprat destacou que a Constituição Federal, apesar de ter como eixo central o princípio da dignidade da pessoa humana, não mais considera o homem atomizado, isolado em si, mas situado, com suas conexões, pertencimentos, ligado a grupos que dão sentido à sua existência e a si próprio, que definem a sua própria identidade. “Mais importante pra questão que ora interessa: na sessão relativa à cultura, ela tem dois dispositivos que tratam desse aspecto étnico-cultural, reconhecendo que a sociedade brasileira é formada por grupos que se organizam em formas próprias de viver, pensar e fazer e formas próprias de expressão”, disse. Segundo a vice-PGR, o artigo 68 tem que ser visto não com uma visão para o passado, com uma visão indenizatória, mas com uma visão prospectiva, da sociedade a ser construída, multicultural, pluriétnica, com grupos atuais, para os quais é preciso assegurar garantia e permanência.
Questões postas na ADI – Sobre o efeito repristinatório, ela disse que alega-se um vício formal porque seria um decreto autônomo. “Se por ventura declarada a inconstitucionalidade, subsistiria o decreto anterior, 3239, que trata exatamente do mesmo tema e ostentando o mesmo vício que ora se invoca”, disse. Conforme explicou, é vasta a jurisprudência do STF sobre a inutilidade da declaração de inconstitucionalidade nessa hipótese.
A respeito de ser um decreto autônomo, Deborah Duprat afirmou que o STF vem entendendo ser legítima a atividade administrativa recolher seu fundamento de validade diretamente da Constituição, principalmente em caso de dispositivo que veicula norma de direito fundamental, como acontece com esse artigo 68. Para ela, também a moderna teoria do direito administrativo é pacífica em relação a essa relativização do princípio da legalidade a informar a atividade administrativa.
Admitindo que seja ato normativo de natureza secundária, ela disse que neste caso também não se prestaria a ADI. E chamou atenção para dois diplomas que estaria regulamentando: a Convenção 169 da OIT e o Pacto de San José da Costa Rica, porque garante o direito de propriedade e a Corte Interamericana de Direitos Humanos vem reconhecendo que esse direito se estende ao reconhecimento da propriedade comunal. Sobre a Convenção da OIT, ela disse que haveria dificuldade porque a jurisprudência entende que a incorporação de tratados internacionais ao direito interno só se dá com a promulgação pelo presidente da República mas que o STF pode rever esse entendimento, principalmente em tratados que veiculem normas de direito fundamental.
Em relação à desapropriação, ela disse que o decreto não cria nenhuma forma nova de desapropriação, mas concordou com o autor da ação que esse dispositivo de fato é o reconhecimento de um direito pré-existente. Para ela, é possível dar uma interpretação conforme a Constituição porque o reconhecimento dessas áreas é um ônus e um bônus de toda a sociedade brasileira. “Interessa a toda a sociedade que tenhamos esses grupos formando parte dessa diversidade cultural e étnica que nos caracteriza, portanto, não é razoável que um único proprietário pague pelo ônus dessa afirmação, é preciso uma indenização justa, ampla, nos moldes em que se dá, por exemplo, uma desapropriação indireta”, declarou. Sobre a referência à ausência de necessidade de desapropriação pelo fato de essas comunidades estarem há 100 anos nessas áreas, contando a abolição da escravatura e a Constituição de 1988, para ela seria um usucapião discriminatório, porque o máximo que há de prazo para o usucapião no direito brasileiro é de 15 anos. Depois, conforme explicou, é desconhecer o processo dito civilizatório que provocou o deslocamento permanente dessas comunidades. Para ela, reclama-se das definições das próprias comunidades a respeito desse território, mas elas não estão definindo território, é um processo que parte da forma de ocupação desse território. “Aqui não há espaço para antecipações a respeito de acomodações constitucionais; como se dá com todo e qualquer direito fundamental, ele vai ser passível de relativização, eventualmente, em face de casos concretos”, sustentou.
Por fim, ela disse que a autoidentificação é um imperativo categórico de uma sociedade plural, pois nenhum grupo étnico, numa sociedade plural, tem o domínio das definições. “É preciso aceitarmos que cada grupo tenha a possibilidade de dizer quem é, temos que aprender a conviver numa sociedade plural onde as definições não fazem parte apenas de um único grupo”, disse. Além disso, para ela, o decreto foi além e permitiu critérios objetivos que permitissem a identificação desse grupo.

Fonte: Secretaria de Comunicação Procuradoria Geral da República (61) 3105-6404/6408

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