terça-feira, 22 de maio de 2007

O sonho racista de um povo branco


O sonho racista de um povo branco



Durante o I Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres em julho de 1911, João Batista Lacerda apresentou a tese Os mestiços do Brasil, onde garantia que em cem anos – isto é, em 2012 – os negros desapareceriam da população brasileira, e os mestiços estariam reduzidos a 3% do total.

Hoje, às vésperas do cumprimento daquela previsão, seu disparate é visível. Mas, na época, aquele era um problema de enorme importância para a classe dominante brasileira cujos intelectuais e cientistas, incapazes de compreender as razões sociais do atraso brasileiros, atribuíam-no à presença da maioria de negros e mestiços em nossa população.

Tanto que a previsão de Lacerda deixou muita gente furiosa – achavam um século muito tempo para que o Brasil se tornasse branco! Mas ele, que era diretor do Museu Nacional, resumia a ciência da época, e também o preconceito racial dominante.

A preocupação com a composição racial do povo brasileiro cresceu nas últimas décadas do século XIX, na crise final da escravidão, e o debate que tomou conta da imprensa e do parlamento brasileiros em busca do substituto para a mão de obra escrava é esclarecedor. Houve propostas de todo o tipo – desde os abolicionistas radicais que, em minoria, defendiam o fim imediato da escravidão sem compensações para os senhores, até aqueles que defendiam uma extinção tão gradual e lenta que arrastaria aquele sistema iníquo até a década de 1930. Outros queriam um período de transição em que os escravos seriam transformados em servos da gleba, juridicamente livres mas impedidos de sair das fazendas onde viviam.

Do ponto de vista racial, uns queriam aproveitar, nas fazendas de café de São Paulo e Minas Gerais, a população livre e pobre do Nordeste, esbarrando na resistência da oligarquia nordestina. Outros queriam trazer chineses (descobriu-se recentemente que o próprio imperador D. Pedro II pensava assim) ou colonos africanos, agora na condição de trabalhadores livres. O racismo esteve na base da rejeição destas propostas, que foram descartadas. O deputado Meneses e Sousa, num relatório de 1875, rejeitou a vinda de chineses dizendo que o Brasil precisava de “sangue novo”, e não de “suco envelhecido e envenenado”. Os chineses, escreveu, constituem uma raça “abastardada” e que “faz degenerar a nossa”. Outro que rejeitou a vinda de chineses foi Joaquim Nabuco que, em 1883, registrou por escrito seu temor de que poderiam corromper “ainda mais a nossa raça” e que o Brasil poderia ser “mongolizado como foi africanizado”.

Prevaleceram assim os que defendiam a imigração européia, principalmente italiana, idéia atraente por vários motivos. Eram trabalhadores vindos de uma sociedade hierárquica e autoritária, e que entrara em crise profunda depois da unificação da Itália; portanto, eram trabalhadores acostumados a uma cultura autoritária semelhante à brasileira e que, esperavam os promotores da imigração, se adaptariam facilmente às condições de trabalho das fazendas do café, ainda duramente marcadas pelas relações escravistas. Além disso, eram europeus e brancos, correspondendo ao sonho de branqueamento da elite brasileira.

Para os escritores brasileiros do período entre as décadas de 1870 e 1930 não havia dúvida sobre necessidade de embranquecer a população, principalmente quando tentavam explicar o atraso do país pois, para eles, os negros, índios e mestiços eram – em graus variáveis – incapazes de civilização, característica que seria própria dos povos brancos. Era uma tese que também correspondia aos interesses da oligarquia agro exportadora que dominava o país. Joaquim Murtinho, que foi ministro da Fazenda do presidente Campos Salles e é um precursor do conservadorismo neoliberal, justificou o favorecimento à agricultura dizendo que a indústria era uma característica própria dos povos brancos!

Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo (1883), queria que a imigração européia trouxesse “uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo”. Na mesma época, o crítico literário José Veríssimo pensava que “mais cedo ou mais tarde ela [a raça branca] vai eliminar a raça negra daqui”. Muitos marcaram prazo para o total branqueamento do país. Silvo Romero escreveu em 1880 que “a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco”, num prazo de “três ou quatro séculos”. Mais tarde, considerou “otimista” o prazo de um século estabelecido por João Batista Lacerda, tempo que considerava pequeno para que desaparecessem o negro, o índio e o mestiço.

Em 1921, o jornalista Artur Neiva escreveu que “daqui a um século, a nação será branca”; em 1923 o deputado Carvalho Neto encurtou o prazo: “o negro, no Brasil, desaparecerá dentro de 70 anos”; em 1930, Pandiá Calógeras escreveu que “a mancha negra tende a desaparecer num tempo relativamente curto em virtude da imigração branca em que a herança de Cam se dissolve” (os africanos eram considerados como descendentes de Cam, o filho que Noé condenou). Mas em 1938 o médico e escritor (de grande prestígio na época) Afrânio Peixoto esticou o prazo dizendo que em 200 anos “terá passado inteiramente o eclipse negro”. Em outro lugar, alargou ainda mais: “Em trezentos anos mais, seremos todos brancos”. Levando o racismo a sério, Afrânio Peixoto comparava o Brasil e os EUA e temia que, lá, o racismo impediria a absorção dos negros e o embranquecimento da população: “não sei que será dos Estados Unidos, se a intolerância saxônica deixar crescer, isolado, o núcleo composto de seus doze milhões de negros.” E terminou seu arrazoado com uma nota pessimista: “Teremos albumina suficiente para refinar toda essa escória?”

Apesar de marcado pelo racismo, o Estado brasileiro – que durante o Império foi um estado escravista – , não criou uma legislação de segregação racial. Entretanto, a legislação de imigração criou obstáculos à entrada de africanos e asiáticos, como o decreto 588, de 28 de junho de 1890 que declarava abria as portas para os “indivíduos válidos e aptos para o trabalho”, exceto “os indígenas da Ásia ou da África”, cuja entrada dependia de autorização do Congresso Nacional. Ou o decreto 7967, de 18 de setembro de 1945, que reiterou os obstáculos à entrada de africanos e asiáticos, ressaltando a necessidade de “desenvolver na composição étnica do país as características mais convenientes de sua ascendência européia”.

Uma tardia manifestação oficial daquele sonho de branqueamento está registrada, quase oitenta anos depois da Abolição, em um livro de propaganda difundido em 1966 pela diplomacia do general Castello Branco, onde se diz que o povo brasileiro é branco, sendo “diminuta a percentagem de pessoas de sangue misto” na população

A tese do branqueamento baseava-se em pressupostos cruéis de supremacia branca. Ela supunha que o Brasil se tornaria branco pois a taxa de natalidade dos negros seria mais baixa, a maior incidência de doenças e à própria desorganização social, fatores que impediriam o crescimento do contingente de negros e mestiços. Supunha também que o gene branco seria mais forte (transplantando para a genética a mesma estrutura hierarquizada da sociedade, com os postos mais elevados ocupados pelos brancos, ou os que se supunham brancos; mais “fortes” portanto), fazendo surgir da miscigenação uma população mais clara, mesmo porque, esperavam, as pessoas de pele mais escura tenderiam a procurar parceiros de pele mais clara, reforçando aquilo que imaginavam ser uma tendência ao predomínio branco.

“O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil”, escreveu Clóvis Moura, “surge exatamente no momento em que o trabalhador escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado. Aí se coloca o dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado, pacífico e progressista. Desta forma, para se modernizar e desenvolver o Brasil só havia um caminho: colocar no lugar do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma população cristã, européia e morigerada”.

A história, a dinâmica populacional e – em nossos dias – a genética, dissolveram aquele delírio embranquecedor, mostrando que o resultado da mistura de gentes em nosso país seguiu – e segue – um caminho diferente e oposto ao sonhado pelo racismo das classes dominantes e seus acólitos.

Em 1994, uma pesquisa conduzida pelo químico Marcos Palatnick, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, calculou a taxa de miscigenação dos cariocas, concluindo se tornavam uniformemente morenos. Era o resultado de quinze anos de estudos com marcadores genéticos, revelando que os cariocas tem genes europeus e africanos: os de pele escura tem 2/3 de herança genética africana; os mulatos, meio a meio; e os de pele clara, 1/3.

Aqueles resultados foram confirmados e generalizados para todo o país pela pesquisa divulgada em abril de 2000 pela equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais coordenada pelo biólogo Sérgio Pena, mostrando que entre a população brasileira que se autoconsidera branca, aproximadamente 30% tem genes que provam sua ascendência indígena, outros 30% sua ascendência negra, e 30% tem ascendência branca. E que a contribuição européia se deu principalmente através dos homens, e a indígena e africana, através das mulheres.

“Somos descendentes de africanos, índios e europeus”, escreveu Verônica Bercht. “A elite racista do começo do século havia sonhado promover, com a imigração européia, o branqueamento da população. Mas os imigrantes não formaram quistos étnicos isolados. Incorporaram-se à população já existente através dos casamentos. Frustraram assim aquela esperança racista. Como os cientistas da UFMG mostraram, a mistura dos imigrantes à população brasileira aumentou enormemente o número dos mestiços, muitos dos quais à primeira vista são brancos, que caracterizam nossa população.”

Ao contrário das previsões racistas, não foi o branco – ou qualquer outro contingente – que prevaleceu, mas todos contribuíram para formar um povo novo, o brasileiro, cuja pele morena deriva justamente da mistura de gentes que aqui se deu através dos séculos.

José Carlos Ruy, José Carlos Ruy, Jornalista. Membro do Comitê Central do PCdoB, editor de A Classe Operária. Foi da redação do jornal Movimento, editor da revista Retrato do Brasil, colaborador do jornal Tribuna da Luta Operária (1981 e 1988). É membro do conselho editorial da revista Princípios.

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