segunda-feira, 19 de maio de 2008

120 anos de desinstitucionalização da escravidão no Brasil

Passado 120 anos da desinstitucionalização da escravidão no Brasil, é possível dizer que o Estado tem imenso débito com a população negra, depositária dos sonhos e das projeções que moveram a população escravizada, liberta e fugitiva a colocar sua vida em risco pela causa da liberdade.
Por: Edson França




Estamos muito longe de completar o significado mais profundo das palavras liberdade e abolição, embora institucionalmente a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, significou um avanço para o Brasil. Enterrou definitivamente um regime sócio-econômico em avançado estágio de putrefação e coroou a luta abolicionista - maior e mais importante exemplo de vitória de movimento de massa popular, iniciado no primeiro repúdio e ação organizada do escravo contra o jugo do senhor, desde os primeiros anos do século 16 e culminou em finais do século 19, somando quase 388 anos de lutas ininterruptas. Os baluartes do processo abolicionista figuram entre negros e brancos, desde Zumbi, Luiza Mahin, Luís Gama e José do Patrocínio a Castro Alves, Antonio Bento, Raul Pompéia, Chiquinha Gonzaga e milhares de heróis e heroínas anônimas que dispuseram de fortuna, segurança física e a própria vida para que não houvesse mais escravidão em terras brasileiras.

A incompletude da abolição legou ao Brasil contemporâneo sérios problemas sociais, oriundos de orientação racista da elite oligarca, responsável pelo projeto que moldou a toda estrutura institucional do Estado nacional republicano. A oligarquia vencedora do jogo político no processo de transição do escravismo ao trabalho livre não permitiu a conclusão da abolição em indenização pecuniária, terras, trabalho, educação, participação política e oportunidade de mobilidade social aos libertados do cativo e seus descendentes. Ao contrário, os poderosos cafeicultores paulistas, os coronéis semifeudais, a burguesia nacional dezenovista e sua geração imediata, através do Estado empreenderam uma política de profunda marginalização e genocídio do elemento negro, negando-lhe direitos sociais básicos, com uso de extremada violência física e investindo fartos recursos na imigração européia. O negro pertencia a um extrato social que deveria ser extinto, pois, segundo os donos do poder, expressava a inferioridade e incapacidade do Brasil civilizar-se, não estava apto a viver na alvissareira sociedade capitalista.

Acumulamos vergonhosas desigualdades políticas, econômicas e educacionais entre negros e brancos, conforme dados oficiais do IBGE e estudos do IPEA; temos profundas desigualdades regionais, os estados mais pobres são os demograficamente mais negros e indígenas; vivemos sob o domínio de uma elite racista, gananciosa, violenta, lacaia do imperialismo estrangeiro, campeã em concentração de renda; uma classe média egoísta, reacionária, silenciosa ante o racismo, mas que resiste com veemência qualquer sinalização de políticas públicas que promovam a população pobre e negra, preocupada em salvaguardar seu privilégio; grande parte da classe política nacional está sob o jugo de caciques regionais, burgueses oportunistas mergulhados em cobiças, comprometidos com interesses inconfessáveis e distantes dos anseios da coletividade. A iniqüidade do racismo perdura, estabelece o grau de oportunidade e status social, segundo a cor da pele e descendência.

Por outro lado, passados 120 anos da desinstitucionalização da escravidão no Brasil, também, é possível dizer que o forte e bravo povo brasileiro tem acumulado vitórias com alto grau de perenidade para promoção da igualdade econômica e social entre negros e brancos, no aprofundamento da democracia e na imposição de um projeto da classe trabalhadora. Vitórias acumuladas na luta política do movimento negro e popular que, objetivamente, não tem permitido a aplicação integral de um projeto racista, conservador e reacionário para o Brasil – hoje representado pelos defensores do neoliberalismo. A luta contra o racismo está num patamar mais elevado, posicionamentos declaradamente racistas não tem sustentação de ordem filosófica, moral, social e política, a sociedade brasileira repudia – a exemplo da infeliz declaração do então Coordenador do Curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia – UFBA, quando indagado sobre a razão da baixa média na notas dos alunos baianos.

Consolidamos um ordenamento jurídico anti-racista que criminaliza a prática do racismo, preconceito e discriminação racial e nos associamos a todas as Declarações Internacionais em defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contra o racismo, discriminação racial ou de gênero. Pautamos o Poder Legislativo em todas as esferas com projetos de valorização e promoção social da população negra. Desmistificamos a falsa democracia racial, impomos ao Estado brasileiro o reconhecimento da existência e incidência negativa do racismo sobre a população negra no Brasil. Instituímos nos âmbitos das administrações públicas nos municípios, estados e união estruturas voltadas ao combate do racismo e promoção da igualdade social entre brancos, negros e índios. Investimos na educação problematizando a aplicação de um currículo essencialmente eurocêntrico; viabilizando o acesso da juventude negra nas universidades através dos cursinhos pré-vestibulares, cotas e Pró-Uni – campo em que enfrentamos fortíssima resistência. Aumentamos a presença do negro em diversos espaços antes negados – alto escalão da República e no Poder Executivo, na Alta Corte e outros espaços importantes do Judiciário, na televisão, no comando dos partidos políticos, dos sindicatos, etc.

Em ritmo lento estamos mudando o Brasil, a despeito do vaticínio contrário dos reacionários representados pelos que entregaram, no dia 30 de abril, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, um manifesto com um sugestivo e hipócrita título: "113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais", cujo objetivo é de impedir a implantação de qualquer política que resgate a dívida do país com a população negra, reconcilie a nação reparando os graves erros do passado. Essas mudanças são integradoras devem ser aprofundadas e intensificadas, pois unirão a coletividade étnica nacional, romperão a trava moral que oblitera a grandeza e impede o desenvolvimento do país. O Brasil tem jeito, seremos um país próspero na medida em que destravarmos um dos principais motivos de nosso atraso: o desperdício de talentos que o racismo produz.



*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra

Um comentário:

UNEGRO-PE disse...

Os dias seguintes à Abolição da Escravatura

Sobreviventes têm regado com sangue, suor e lágrimas a luta contra o racismo nos 438 mil dias seguintes ao 13/5/1888. Assim ´´fazemos a hora´´, ´´que como as dunas, ninguém pode segurar´´, de colocar racistas de todos os matizes e o Estado brasileiro, outra vez, ´´nas cordas´´.

Por: Fatima Oliveira

Há 120 anos, em 13 de maio de 1888, a princesa regente Isabel sancionou a Lei Áurea: ´´Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.´´ O Dia da Abolição da Escravatura, hoje também Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, oficializou o fim da escravidão negra.

Encanta-me a sabedoria dos ´´negros de raízes´´ que jamais deram bola para críticas sobre as feéricas ´´festas de pretos´´, no 13 de maio, celebrando o fim do cativeiro, e não a princesa!

Relembro as festas da ´´União´´ (Colinas, MA), um clube de pretos. Eu apreciava de longe os acordes mágicos da orquestra. Sob guarda do Colégio Colinense, eu não era a negra que optei ser depois. Era uma morena do ´´cabelo bom´´. Precisa o racismo ser mais cruel?

Agregamos às celebrações do fim do cativeiro: reafirmar o definido na Conferência de Durban (2001); aprovar o Estatuto da Igualdade Racial; e, até a vitória da luta pelo acesso universal à escola de todos os graus, que exige o fim do vestibular, respeitar as cotas étnicas: um direito à reparação e um modo pedagógico de obrigar os brancos ao aprendizado de coletivizar privilégios seculares. Reafirmo: a conclusão do segundo grau é a única condição legal e a exigência moralmente sustentável para acesso à universidade!

São necessárias ousadia e honestidade intelectual na revisão da história para exibir a multiplicidade do real. Isabel não é A Redentora, como consta na história oficial, tentando suplantar e usurpar a peleja dos escravos, a resistência ao massacre cultural e o processo da campanha abolicionista, com seus limites, erros e acertos. Há novos dados que selam sua simpatia pela luta abolicionista e evidenciam que ela assinou a Lei Áurea possível, ´´nas cordas´´, ainda inconclusa, e não uma falsa abolição. Mas a que foi possível oficializar, ainda que o simplorismo rasteiro diga que foi mero ´´respaldo de libertação jurídica´´. A ´´Carta da Princesa ao Visconde de Santa Victória´´ e o uso do símbolo e senha abolicionista, a ´´camélia do Leblon´´, em sua mesa de trabalho e em sua capela, além dos dois buquês de camélias que recebeu quando assinou a Lei Áurea, são signos de uma conjuntura de brechas, mas adversa. A lição: se faz política conforme as circunstâncias.

Exatos 90 dias separam a Lei Áurea do fim do Império e advento da República, tão insana para negros quanto o Brasil Colônia, que instaurou a escravidão, e o Império e suas leis que impediam o acesso dos escravos à escola (decreto complementar à Constituição de 1824) e à terra (Lei da Terra, de 1850, cuja posse, para negros, só era permitida via compra!). Em 1888, só 5% dos escravos eram cativos; 95% eram ´´forros´´ por seus próprios meios; a Lei Áurea, 16 anos após o último Censo do Império (1872), beneficiou 750 mil, do total de 1,5 milhão de escravos.

Se fosse apenas um seria válida, pois a libertação jurídica é a soleira da liberdade. Vale ressaltar que a insensatez do racismo republicano é tanta que nem sabemos quem, na República nascente, embolsou o dinheiro arrecadado pelo Império para comprar terras para os ex-escravos, do qual fala a carta da princesa: ´´do envio dos fundos de seo banco em forma de doação como indenização aos ex-escravos libertos em 13 de maio´´.

Sobreviventes da escravidão negra têm regado com sangue, suor e lágrimas a luta contra o racismo nos 438 mil dias seguintes ao 13 de maio de 1888. Assim ´´fazemos a hora´´ de colocar racistas de todos os matizes e o Estado brasileiro, outra vez, ´´nas cordas´´. Exigimos justiça étnica para quem construiu um país no lombo, em contraposição ao discurso mentiroso da democracia racial dos praticantes da fé bandida que é o racismo.

Fatima Oliveira, Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das
Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005