29 DE JULHO DE 2008 - 19h30
por Edson França*
Nos dias 16 e 17 de junho de 2008, em Brasília, representantes da sociedade civil de 23 Estados da América (Canadá, Estados Unidos e México - América do Norte; Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá - América Central; Cuba, Grenada, Porto Rico, República Dominicana e Trinidad e Tobago - Caribe; Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil – América do Sul) participaram da Conferência da Sociedade Civil das Américas – Preparatória à Revisão de Durban.Durante as conferências reafirmou-se princípios importantes para compreensão do racismo. Um deles é entendê-lo como um flagelo humano. Sob esse entendimento questiona-se o exclusivismo do universalismo nas políticas sociais governamentais. Legítima intervenção focalizada, específica, emergencial e temporária, forma que deve ser enfrentado qualquer flagelo. Em outras palavras, é facultado ao Estado lançar mãos de política pública para corrigir o impacto negativo do racismo sobre suas vítimas, daí a legitimidade das cotas para acesso nas universidades e no mercado de trabalho, plano de saúde que atue sobre as especificidades da população negra, valorização cultural, dentre outros.
Outro princípio importante reafirmado é a compreensão a escravidão e o tráfico transatlântico são crimes lesa humanidade. Trata-se de algo de grande relevância para o enfrentamento do racismo, na medida que esse entendimento tem desdobramentos objetivos para o enfrentamento do racismo, crimes dessa natureza não prescrevem, assim sempre estará em pauta o debate da reparação, até que ela se efetive. O desafio é encontrar a melhor forma de desenvolver esse debate e ajustar as opiniões que estão sobre a mesa. A imprescritibilidade do crime permite que se estabeleça um debate rico e se chega a um denominador comum – especialmente entre os países africanos e a comunidade negra da diáspora. A cada dia fortalece a consciência dos povos de que aqueles que se beneficiaram com a escravidão e com o tráfico de carnes humanas (Estados e herdeiros da fortuna saqueada) têm uma dívida a ser resgatada.
A conferência avaliou brevemente o estágio da agenda dos Estados no enfrentamento do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas. Apesar dos múltiplos olhares que se apresentaram no evento, compreendo que, de modo geral, houve grande empenho e algumas vitórias. Destacadamente, a Bolívia elegeu Evo Morales, o primeiro índio a Presidência da República, vem realizando um governo popular e altivo, voltado à maioria da população, composta por índios. Por isso sofre duros ataques da elite branca divisionista que sempre esteve no poder. A Venezuela é outro exemplo a ser destacado, elegeu Hugo Chaves, um afro-indígena socialista, para Presidência da República, com isso, a Venezuela tem somado altos índices de melhora na qualidade de vida da população pobre, onde se encontram os negros, índios e não brancos. Esse governo também é alvo do ódio da elite branca venezuelana. A América Latina registra outras vitórias políticas com a ascensão de forças populares no poder (Nicarágua, Equador, Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil), são movimentos importantes porque o racismo se identifica com o conservadorismo, com as elites nababas no poder e com a falta de democracia.
Quanto ao comportamento do Brasil após a III Conferencia Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em 2001, em Durban, África do Sul, obteve grandes avanços, alguns fundamentais para contínua progressividade do combate ao racismo. Aliás, é reconhecidamente notória, na região, a superioridade brasileira no enfrentamento da agenda anti-racista, mas há graves insuficiências que depõe contra todos esforços envidados e contra a própria nação. Sobre os aspectos positivos da experiência brasileira após a Conferência de Durban, destacamos que:
• O Estado brasileiro formalmente reconheceu a existência do racismo e seus nefastos desdobramentos para população negra e indígena, superando um grave entrave para sua promoção social. Após décadas de explícita negação enterramos definitivamente o mito da democracia racial, que tanto atraso trouxe ao justo desenvolvimento sócio-econômico de negras, negros, índios e índias. É impossível propor remédio para curar doença inexistente.
• Intensificou a implantação no âmbito dos executivos municipais, estaduais e federal órgãos/instituições voltadas a elaboração e/ou implantação de políticas públicas para superar atrasos socais e econômicos causados pelo racismo na vida cotidiana de negros, negras e índios. Esses organismos na máquina estatal são instrumentos que devem ser valorizados, embora o alcance seja limitado, pois atuam contra o racismo institucional, fato que se aproxima das ações propostas pelo Plano de Ação de Durban. Um dos resultados imediatos que esses organismos possibilitaram foi o aumento quantitativo e melhora qualitativa das políticas anti-racistas (desenvolvimento conceitual e conquista de maior legitimidade).
• Os partidos políticos, sindicatos e várias instituições da sociedade civil desenvolveram mecanismos administrativos para responder organicamente as demandas anti-racistas. Embora a pauta contra o racismo é um tema marginal, o núcleo dirigente partidário se manifesta quando provocado por fato social de grande relevância, comoção social ou quando pressionado pela militância. Muitos ainda subestimam a relevância dessa temática para o desenvolvimento da nossa democracia.
• Governos e sociedade civil envidaram esforços para democratizar a educação: influenciando o currículo escolar através das múltiplas iniciativas do movimento negro brasileiro; da intensificação de pesquisas no campo das relações raciais; da implantação da lei 10.639/03, hoje, 11.659/08; implantação de diversas modalidades de ações afirmativas em 48 universidades públicas, somada ao PRO-UNE tem contribuído para progressiva mudança da cara e de rumos das universidades brasileiras. A intensificação desse processo garantirá para as próximas gerações a democratização do saber e compartilharão a direção do Brasil.
• O Decreto Presidencial 4887/03 e o Programa Brasil Quilombola destacam-se como mais um expressivo acerto da política social brasileira pós-Durban. Um dado importante para compreender essas iniciativas é o engajamento do latifúndio, agronegócio, Partido dos Democratas - DEM e da bancada ruralista no Congresso Nacional para derrubar o decreto, deslegitimar a luta quilombola e negar direitos históricos constitucionalmente conquistados. Os poderosos estão ameaçados.
A ascensão das forças progressistas ao poder foi fundamental para o avanço referido, pois permitiu novo direcionamento nas prioridades nacionais e maior qualificação do padrão das políticas sociais. Resultando numa exitosa experiência de combate a pobreza. Fato que beneficiou diretamente a massa negra, indígena e não branca marginalizada. De modo que o processo eleitoral em voga definirá a continuidade do projeto em curso e seu futuro aprofundamento. Segundo o Plano de Ação de Durban, o combate a pobreza é uma necessidade imperiosa, pois uma conseqüência imediata do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e intolerâncias correlatas é a marginalização social e material de suas vítimas.
A despeito de todo sucesso, há graus diferenciados de fragilidades na promoção da equidade racial, devido os sucessivos ataques dos setores reacionários, da cultura exclusivamente universalista da máquina e dos gestores públicos, pela ainda débil convicção de setores dos governos progressistas e pela insistência do racismo e do mito da democracia racial no Brasil. Em razão disso são ainda grandes os desafios. A segurança pública se constitui no “calcanhar de Aquiles” para o efetivo gozo da cidadania. A população negra é o principal alvo das armas de fogo que encontramos nas mãos da polícia, da segurança privada e do crime, matam especialmente a juventude.
Pode ser considerada a fase mais explícita do triunfo do racismo na atualidade. Sua forma mais pura, sem máscara. Na palavra do Professor cubano Carlos Moore, “o racismo manifesto como a última fronteira do ódio”. Promovendo o extermínio físico, a barbárie, negando o universalmente consagrado direito a vida. O Brasil está devendo (e muito) implementação de políticas que assegure, de fato, os direitos humanos das populações pobres e negras. Mais ainda, sua incompetência nesse campo denuncia que continua em curso o projeto genocída e racista gestado pela elite brasileira. Expresso no sistema carcerário, no despreparo das polícias, na existência da pena de morte sem julgamento ou direito a defesa (perpretada e legitimada pelo Estado, que primeiro atira), na negação da justiça aos pobres, na sobrevivência e fortalecimento do crime organizado, na leniência com o crime do colarinho branco(como a infeliz interferência do Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal, libertando duas vezes um banqueiro suspeito de crimes, nos indicou para onde se dirige os olhos das instituições que tem como princípio garantir o Estado de Direito), na impunidade e na falta de perspectiva da juventude.
O Brasil está sob uma guerra civil silenciosamente decretada e os jovens negros são assassinados indiscriminadamente todos os dias. A violência praticada no Brasil é um caso de calamidade pública, sua normalização só é possível porque somos uma sociedade construída sob a égide do racismo, ainda somos atingidos com força por esse flagelo. A esquerda brasileira tem que priorizar esse tema, não pode ficar nas mãos da direita demagoga que propõe somente medidas repressivas como criminalização dos movimentos sociais, redução da idade penal, aumento das penas, pena de morte, cadeia, cadeia e cadeia. Não há possibilidade de um país que nega um direito tão elementar (a vida) oferecer esperança, segurança, orgulho e dignidade a seu povo.
As eleições municipais jogam um papel fundamental no destino das políticas anti-racistas. É fundamental fortalecer o campo progressista, para que o Brasil dê o passo seguinte. Há que se superar as insuficiências e os desafios, ou, sob a vitória dos partidos conservadores comprometer a agenda social do movimento negro. O Brasil precisa reparar as injustiças que historicamente submete seu povo. Ampliar alcance do estado para chegar mais perto dos pobres, adquirir maior efetividade nas políticas sociais e capacidade de melhorar a qualidade de vida daqueles que ficam a margem das benesses e conquistas materiais socialmente produzidas. As forças burguesas não têm capacidade e não deve gozar da confiança do movimento negro para cumprir essa tarefa.
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