No dia 24 de julho de 1908, isto é, há cem anos, nascia Solano Trindade, um poeta de importância fundamental para a literatura afro-brasileira. Solicitamos à sua filha, Raquel Trindade, que falasse (ou melhor, escrevesse) um pouco sobre seu pai e ela gentilmente nos brindou com o texto a seguir, que desenha um rosto bem humano de um poeta que precisa ser lido sempre, especialmente pelas novas gerações.
SOLANO TRINDADE, MEU PAI
RAQUEL TRINDADE
Creio que é o sonho de toda criança: ter um pai como o meu. Na época em que os pais batiam muito nas crianças, ele era carinhoso e paciente com a gente: eu, Godiva, Liberto e Chiquinho. Em 1945, ele já falava no Direito da Criança, quando essa lei nem sonhava em existir.
Antes de sair para o trabalho, para vender seus livros e quadros (que trabalho, dirão meus irmãos trabalhadores, ele dizia quando entrava no trem da Leopoldina em Duque de Caxias, no Rio), ele brincava com a gente no quintal.
Um dia uma vizinha foi fazer queixa de mim, porque eu tinha batido no filho dela. Ela dizia: - Essa menina precisa de uma surra.
Meu pai, pra satisfazer a vizinha, disse pra mim: - Você não quer ser artista? Vamos fazer um teste, eu vou bater com o cinto na parede e você grita como se estivesse apanhando de verdade -. E assim foi... A vizinha ouviu os gritos de sua casa, e foi encontrar minha mãe Margarida no caminho: - Dona Margarida, estou morrendo de remorso, fiz queixa da Raquel e seu Francisco deu uma surra nela.
MARGARIDA - Francisco, você bateu em Raquel?
SOLANO - Que nada, essa menina é uma artista, eu batia na parede e ela gritava.
De tarde, a vizinha, ainda com remorso, me trouxe um bolo.
Quando eu tinha 8 pra 9 anos, meu pai arranjou um emprego no IBGE da Praia Vermelha (Rio), só que me levava junto, assinava o ponto e saía comigo, me levava na Pinacoteca, na Biblioteca Nacional, na Escola de Belas Artes, no Municipal do Rio de Janeiro para assistir óperas, balé e música clássica. Parávamos depois no bar Vermelhinho, na rua Araújo Porto Alegre, em frente à Associação Brasileira de Imprensa (Rio), onde ele se encontrava com Grande Otelo, a pintora Djanira, Aldemir Martins, o sociólogo Edson Carneiro, com quem, junto com a minha mãe, criou o Teatro Popular Brasileiro. Estava também o Barão de Itararé, Silveira Sampaio, Paschoal Carlos Magno, Aníbal Machado, a intelectualidade e os militantes de esquerda do Rio de Janeiro. E nessa, esquecia de assinar o ponto de volta no IBGE.
À noite, íamos assistir o Teatro Experimental do Negro, do Abdias Nascimento; outra noite, a Orquestra Afro-Brasileira e Abigail Moura; outra noite, o Ballet Afro de Mercedes Batista e o ensaio do grupo folclórico de Haroldo Costa, onde minha mãe ensinava dança.
Meu pai conversava muito comigo, me falava dos problemas raciais, da má divisão de renda do povo brasileiro. Me dizia do respeito que se devia ter com as diferenças, me falava da história da África, como eu devia me orgulhar de ser negra, sem discriminar qualquer outra raça. Enquanto minha mãe (Terapeuta Ocupacional, trabalhou no Museu da Imagem do Inconsciente, com Dra. Nice de Oliveira; era uma exímia costureira, bordadeira) me ensinou a fazer os serviços domésticos, a ser sempre honesta, a me afastar de vícios, como fumar e beber.
Ela, mesmo presbiteriana como era, me ensinou todas as danças folclóricas, com exceção das danças dos Orixás, que aprendi quando entrei no Candomblé.
Papai me orientava para as artes, me levando a ateliês de seus amigos, comprando livros, porque sabia que eu gostava de ler.
Fiz o primário gratuito porque tinha uma senhora, Dona Armanda Álvaro Alberto, que mantinha uma escola para as crianças pobres de Caxias, muito avançada, nos moldes europeus.
Mas o ginásio, não tinha público, papai pagava com dificuldade, pois ele vivia da arte. Aí eu atrasava o pagamento, passava abaixadinha na secretaria para que o Dr. Ely Combat (diretor do ginásio de Caxias) não me visse, aí ele ia até a sala de aula e falava:
- Quem não pagou a mensalidade não faz prova...
Falava com papai, ele dizia: - Filha, não vou lhe deixar nada material, só o que você estudar, vou pra cidade tentar vender um quadro ou livros, mas você não vai perder a prova.
Eu tinha uns 9 anos quando ele foi preso político. Policiais truculentos, armados até os dentes, invadiram à noite a nossa casa, ele estava de cueca "samba-canção", acalmava a gente, eu e minha irmã chorando, Liberto com sarampo na cama que os policiais reviraram dizendo que tinha armas escondidas. Logo papai, que era pacifista como Gandhi, mamãe ficou brava com os policiais.
Levaram ele... Mamãe ia de prisão em prisão com a gente, até que descobriu que ele estava preso incomunicável na Rua da Relação (Rio).
Depois, quando eu estudava o clássico, me levou para a Europa com o elenco do Teatro Popular Brasileiro, ele foi de avião, nós fomos de navio Louis Limiere, e voltamos no Provence.
Em 1961, convidados pelo escultor Assis, viemos para o Embu.
E hoje coloco em prática, com filhos e netos, todos os ensinamentos desse grande pai Solano Trindade.
Obrigada meu pai Francisco Solano Trindade e Maria Margarida da Trindade por terem existido.
Raquel Trindade, 26 de junho de 2008 - Embu das Artes, São Paulo - Brasil
Poema inédito de meu pai:
NEM SÓ DE POESIA VIVE O POETA
Nem só de poesia vive o poeta
há o "fim do mês"
o agasalho
a farmácia
a pinga
o tempo ruim, com chuva
alguém nos olhando
Policialescamente
De vez em quando
Um pouco de poesia
Uma conta atrasada
Um cobrador exigente
Um trabalho mal pago
Uma fome
Um discurso à moda Ruy
E às vezes uma mulher fazendo carinho
Hoje a lua não é mais dos poetas
Hoje a lua é dos astronautas
Solano Trindade
Aberto o Centenário Solano Trindade De fato, da arte a família Trindade extrai o alimento que a revigora. Talento os Trindade têm de sobra. Vítor da Trindade, no vocal - ao lado dos filhos Manu, bateria, e MC Trindade, vocal, do percussionista Carlos Caçapava e do baixista Beto Birger - apresentou poesias do avô Solano musicadas por ele. O projeto deve resultar num CD que inclui no repertório as excelentes "A Velhinha do Angu", "Xangô", "Poema à Mulher Negra" e "Navio Negreiro". Segundo Vítor, antes as canções estavam intelectuais demais, depois ele foi descobrindo novos caminhos, adotando o estilo mais popular possível, como o avô gostaria que fosse. A razão de ser da cultura popular, expressada em diversas faces da arte, das tradições folclóricas, do patrimônio material e espiritual de um povo, encontrou em Solano Trindade sua marca de manifestação. "Solano", originário do latim, significa "O vento do levante". Há quem interprete a palavra como "Vento forte da África". E foi como um forte vento afro-brasileiro que Solano Trindade movimentou os cenários da cultura popular por onde passou, principalmente entre os anos 30 e 60. Francisco Solano Trindade nasceu no berço miscigenado da cultura popular, no bairro São José, Recife, Pernambuco, em 24 de julho de 1908. No Embu, ele chegou em 1961 e se apaixonou pela cidade, sendo um dos precursores do movimento que a transformaria em Embu das Artes. Poeta, escreveu Poemas D´uma Vida Simples (1944), Seis Tempos de Poesia (1958) e Cantares ao Meu Povo (1961). Ator, foi o primeiro a interpretar Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, no teatro, e participou de filmes como O Santo Milagroso, Agulha no Palheiro e, como co-produtor de Magia Verde, foi premiado em Cannes. Multifacetado, Solano foi também teatrólogo, folclorista, pintor. Sua obra recebeu elogios de intelectuais do porte de Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, Roger Bastide, Otto Maria Carpeux, Darcy Ribeiro, entre outros. Dentre seus poemas, Tem Gente com Fome foi talvez o mais famoso e elogiado, tendo sido musicado em 1975 pelo grupo Secos & Molhados. A censura, no entanto, proibiu a execução e somente em 1980 Ney Matogrosso, já em carreira solo, incluiu a música em seu disco. O multiartista faleceu em fevereiro de 1974, deixando sua arte como legado. Tem gente com fome
Sim, isso seria mais do que justo. Mas não foi o que aconteceu com Solano Trindade.
Mesmo reverenciado por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Darcy Ribeiro, José Louzeiro e Sérgio Milliet, Solano não consta nos manuais de literatura, não é um autor mencionado nas escolas e nem é encontrado com regularidade nas livrarias e bibliotecas.
Prova disso é que mundos tão diferentes quanto os de Carla Maria, 24, auxiliar de serviços gerais e Josbeth Macário, 24, jornalista, concordam num ponto: desde os tempos de escola (ela, em instituição pública; ele, em instituição privada) até hoje, nunca ouviram falar do nome, da obra e da importância de Solano.
"É mesmo uma pena ter de reconhecer que um autor com tantos predicados tenha sido assim negligenciado. Mesmo com todos os meios de popularização dos quais dispomos hoje, ele foi deixado de lado - apesar de toda a produção e de todo o esforço dele pra contribuir pra melhoria da sociedade", afirma o jornalista. Já Carla faz a seguinte colocação: "Vai ver, isso aconteceu também porque ele era preto. Você sabe, tem gente que discrimina, com ele não ia ser diferente".
Injustiçado
Ainda assim, o acesso à obra de Solano é difícil. Para todos os efeitos, quem quiser ler qualquer verso deste autor terá de recorrer a bons sebos ou a uma pesquisa on line.
Núcleo de Teatro Experimental do Negro-SP (1951) / Diretor Solano Trindade
Trabalhos
Em 1988, o Centro Cultural Solano Trindade (fundado em 1975) publicou o livro Tem Gente com Fome e Outros Poemas.
O multiartista radicado no Embu (falecido em 1974), elogiado por intelectuais como Carlos Drummond de Andrade, Darcy Ribeiro, Sérgio Milliet, entre outros, completaria o centenário em 24 de julho. Para reverenciá-lo, a Prefeitura promove atividades artístico-culturais até o fim do mês (veja a programação na página de Turismo).
Solano Trindade não poderia deixar uma herança mais multirracial e cultural. A família Trindade mistura negros, brancos, amarelos, índios. "Papai já tinha a visão de que a gente se unisse a todas as raças, tanto que tenho netos "japonegro", afro-germânico, e papai falava "tenha orgulho de ser negro e das nossas tradições"", ressaltou Raquel, folclorista e artista plástica que herdou e transferiu para sua geração o talento do pai e também da mãe, Margarida Trindade. Ambos, em 1950, junto com Edson Carneiro fundaram no Rio de Janeiro o Teatro Popular Brasileiro, teatro folclórico de valorização da cultura popular. Ela lembrou ainda quando Solano chegou ao Embu, convidado por Sakai e Assis. "Ele ficou louco pelo Embu, achou que tudo que havia de ruim no mundo, Embu tinha de bom". Das lições deixadas por Solano a Raquel e seus descendentes, uma é lembrada em especial. "Papai certa vez me disse: "não vou deixar nada de material. Se você gosta de arte filha, se entregue a ela. A arte é o alimento da alma"".
Vítor da Trindade e banda cantam Solano
Antes de apresentar o Maracatu do Teatro Popular Solano Trindade, Raquel Trindade já expressava sua emoção. "Eu sou a mulher mais feliz do mundo. Tenho a arte, filhos, netos maravilhosos, só não tenho dinheiro, mas aí seria covardia... Estou muito feliz", falou à platéia formada por autoridades municipais e um público que lotou o Auditório Cassio M´Boy para prestigiar o evento.
Cem anos de Solano Trindade
"Trem sujo da Leopoldina,/ Correndo correndo,/Parece dizer:/ Tem gente com fome,/ Tem gente com fome,/ Tem gente com fome.../ Piiiii!/(...) Só nas estações,/Quando vai parando,/Lentamente, começa a dizer:/Se tem gente com fome,/Dai de comer.../Se tem gente com fome,/Dai de comer.../Mas o freio de ar,/Todo autoritário,/Manda o trem calar:/Psiuuuuu..."
Solano Trindade
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